A Lenda de Átima - Parte V

V

Os homens me conduziram por alguns corredores e entramos numa sala não muito grande onde poucas gravuras podiam ser vistas pelas paredes laterais. Fixada na parede ao fundo um grande peça de ouro representava o símbolo que já se tornara familiar para mim, um círculo com um triângulo no centro.

Pequenas mesas distribuídas por toda a sala acondicionavam esculturas das mais variadas formas, algumas estilizando pessoas, outras com significados que fugiam à minha compreensão. Num dos cantos da sala, Bruno sentado em uma cadeira parecia meditar. Os homens saíram da sala deixando-nos a sós. Após um breve silêncio ele falou:

-- Vejo que conseguiu chegar até aqui sem muitos problemas.

-- Eu não estava vindo para cá. Seus homens é que me trouxeram. -- Respondi.

-- Não. Você veio aqui por que lhe pedi que viesse. -- Sua voz era calma e pausada.

-- Como isso é possível? Eu nem sabia que esta sala existia?

-- Sim eu sei. Sabe porque me chamam de mestre?

-- Ninguém me falou nada de concreto até agora, e por falar nisso onde estou afinal?

-- Você não gostaria de ligar o gravador antes de começar-mos?

Gelei. Senti-me totalmente desarmado ao ouvi-lo dizer aquilo. Depois de um momento em que recompus meus pensamentos, afirmei:

-- Estiveram me espionando afinal. Devem ter se divertido bastante ao me verem tomar banho não é.

-- Não preciso espionar ninguém. Os olhos são os espelhos da alma. Alguém já disso isso não é mesmo? Aprenda a lê-los e você poderá conhecer as pessoas.

-- Você pode ler pensamentos? É por isso que o chamam de mestre?

-- Não o faria sem necessidade. Você também poderia fazê-lo se não fosse tão arrogante e presunçoso. Seu poder já se manifestou uma vez lembra-se?

-- Está me dizendo que tenho o poder de ler a mente das pessoas? -- Soltei uma gargalhada, e dirigi-me até ele. -- Não me faça rir.

-- Este é um gesto arrogante. -- Ele falou trocando de posição e apontando um dedo para mim. -- Claro você teria que passar por um longo e penoso treinamento e na sua idade as chances de obter sucesso são muito pequenas, mas existem.

-- Timóteo, o velho que me trouxe até aqui pode fazê-lo?

-- Não, ele preferiu contribuir à distância. Permanece como um de nossos olhos no mundo exterior. Carlos não tinha o dom. Poucas pessoas não o tem, mas sua alma era grosseira demais para isso. Mas sua bondade era suficiente para que ele pudesse compreender a verdade e aceitá-la.

-- Que verdade é essa? -- Perguntei enquanto me sentava na cadeira à sua frente, sem disfarçar minha ironia diante de tudo aquilo que ele me dizia. Não podia contestar o fato de que viera até ali sozinho, mas assim como poderiam ter me vigiado no quarto descobrindo que eu escondera a câmera e o gravador nos bolsos, poderiam ter-me observado entrar no veículo e então tê-lo controlado remotamente para que ele se deslocasse até aqui.

-- Chamam-me de mestre porque o dom é muito forte em mim, mesmo para uma criança nascida aqui em Nova Possêidon. Lembra-se daquela noite, anos atrás, quando acampamos juntos na chapada. Tudo aquilo não aconteceu por acaso. Nem você viu tudo por acidente. Eu sempre fora, até então, uma pessoa atormentada por visões que não podia compreender. Visitar a chapada foi um caminho inconsciente que tomei para alcançar paz interior. O que você viu naquela noite foi a energia concentrada naquela região escoando por mim e me transmitindo conhecimento. Eu não poderia voar, mesmo que quisesse. O que você viu, antes que suas forças se esgotassem, foi a minha alma viajando pelas memórias sepultadas entre as pedras que cobrem esta região. Eu pude ver naquela noite tudo que foi e será em minha vida. Mas faltava uma chama, uma pequena luz de conhecimento para que eu pudesse compreender e finalmente tomar parte da história.

Ele falava com euforia. Seu rosto estampava alegria ao dizer tudo aquilo, como se partilhasse de um conhecimento tão belo e profundo que fosse capaz de dar paz a um coração atormentado. Perguntei-lhe: -- Na última vez que nos vimos você me disse que eu saberia de tudo no devido tempo. Já sabia que iríamos nos encontrar aqui?

-- Não. Embora eu tivesse vislumbrado sombras de tudo isto que nos cerca, eu não podia ver claramente o que me esperava. Pude, no entanto, sentir seus olhos a me fitarem naquela noite e compreendi que nossos destinos estavam entrelaçados. Você também foi escolhido. Mas seu dom não era suficiente para compreender tudo então, você não tinha forças para isso. Sua vida posterior em nada contribuiu para que você mudasse. Eu ao contrário, parti em busca de respostas até que conheci Timóteo que me trouxe aqui.

Fez uma pequena pausa para tomar fôlego e continuou:

-- Formamos uma grande comunidade. Pessoas de todas os cantos do mundo aqui chegam movidos por instintos que fogem à compreensão das pessoas comuns. Mas nossa população cresce mesmo sem a chegada de novos adeptos. Aqui educamos nossas crianças e as introduzimos nos treinamentos que as tornam amplamente capacitadas a participar da plenitude de nossos conhecimentos.

À medida que ele ia falando percebia que sua ansiedade ia aumentando, interrompi-o e perguntei?

-- Que língua estranha é esta que todos falam aqui?

-- Trata-se da antiga língua falada pelo povo que originalmente migrou para esta cidade, transmitida de geração em geração aos mais novos. Segundo a história registrada pelos antigos, esta cidade foi construída a milhares de anos atrás, antes mesmo que o homem surgisse na face da terra, por uma civilização cujo avanço tecnológico ainda foge a nossa total compreensão. Eles vieram de um planeta muito distante e aqui construíram um novo lar. Haviam mais seis cidades como esta na Terra, que foram destruídas por uma guerra que se abateu entre eles. Ao que tudo indica, mesmo com todo seu desenvolvimento cultural e científico, este povo também não havia conseguido se livrar do flagelo das guerras.

-- Eles não eram muito diferentes de nós então! -- Exclamei.

-- Fisicamente eram muito semelhantes a nós, eram maiores e mais evoluídos. Sua outras cidades foram destruídas quando a humanidade já havia nascido. Alguns registros, ocultos por culturas orientais, relatam tais guerras que aconteceram por causa do homem.

-- Como assim, brigaram por nossa causa? -- Perguntei surpreso.

-- Sim. A humanidade surgiu sozinha. Seguimos trilhas evolutivas bastante particulares. Num dado momento eles intervieram em nossa evolução. A princípio apenas transmitindo aos nossos ancestrais conhecimentos básicos que os ajudaram a acelerar este processo. Como, por exemplo, dando-lhes o segredo do fogo ou facilitando a descoberta da roda. Toda esta contribuição para com nossa raça, era fruto de um consenso entre eles. Num certo momento porém eles se dividiram entre os que olhavam os homens com compaixão e concordavam que a raça humana viesse a partilhar com eles, em pé de igualdade, os mistérios do universo, e os que consideravam os homens seres inferiores, úteis apenas para servi-los.

Fez uma pausa trocando novamente de posição e prosseguiu:

-- Mas também eles forneceram sua parcela de contribuição para a raça humana. Usavam nossas mulheres para satisfazer suas fantasias sexuais e, dessa forma, contribuíram para a miscigenação de nossas raças. Assim surgiu uma nova espécie humana que mais tarde viria a dominar todo o planeta.

-- Quem eram estes extraterrestres. -- Perguntei curioso.

-- Ficaram conhecidos como Atlantas. Os que simpatizavam conosco escolheram um grupo humano que se estabelecera nas terras, hoje submersas, que ligavam a América do Sul ao continente Africano. Fornecendo valiosas contribuições, rapidamente esta civilização alcançou um alto grau de desenvolvimento para a época. Os Possêidons, como eram chamados, dominaram os princípios da Astronomia, Medicina e da Matemática. Mas a guerra entre os Atlantas tornou-se inevitável. Quando descobriram que o homem possuía um dom do qual eles não compartilhavam, e que poderia nos tornar mais fortes do que eles, os que nos desprezavam temendo tornarem-se nossos escravos decidiram que a humanidade tinha que ser dizimada.

-- O dom de ler a mente? -- Eu estava completamente envolvido pelo relato.

-- Também. Nós possuíamos a capacidade de controlar as forças que regem o universo. De moldá-las à nossa vontade. Os Possêidons conseguiram isso. Em rituais que reuniam grandes grupos humanos, os sacerdotes realizavam maravilhas que pareciam verdadeiros milagres aos olhos dos que não eram iniciados naqueles conhecimentos. O homem descobriu-se capaz de despertar a memória gravada em seu cérebro por seus antepassados. A vislumbrar o futuro que o aguardava. Tornamo-nos capazes de viajar com nossa mente pelo espaço e pelo tempo. De mover objetos simplesmente com a força do desejo. Mesmo sem a tecnologia deles tornamo-nos superiores. Aqueles, entre eles, que nos agrediam não compreenderam que seriam enaltecidos com a contribuição do nosso conhecimento. Não entenderam que o homem só precisaria aprender a usar esse poder, que de tão grande, nos faria superiores o bastante para abandonar defeitos como a ganância e a cobiça.

Fez um breve pausa como se testasse meu interesse e, percebendo minha ansiedade prosseguiu:

-- O conflito terminou, não antes que metade das populações humana e atlanta fossem dizimadas. Das cidades que aqueles seres haviam edificado, somente esta restou, onde o grupo que por nós lutava, permaneceu durante longos anos, atormentado pelo alto preço da vitória. Decidiram que o melhor a fazer era deixar-nos livres para trilhar nosso caminho, acreditavam que estávamos aptos a prosseguir sozinhos e assim partiram com a promessa de um dia voltar para compartilhar nossos conhecimentos. Não entenderam que éramos dependentes. Sem eles nos desagregamos, perdemos o controle sobre nossos poderes e fomos progressivamente retornando à barbárie. A história humana conhecida começou precisamente quando a elevação do nível dos mares transformou Possêidon primeiro em uma ilha e finalmente a sepultou para sempre sob o mar. Os habitantes que ainda restavam daquela civilização emigraram para várias partes do mundo, contribuindo em maior ou menor escala com a cultura de outras civilizações que se formavam. Dentre estes emigrantes, alguns cujo poder era maior, vieram secretamente para cá e adotaram esta cidade, que os extraterrestres haviam abandonado, como seu novo lar, confiantes de que deviam continuar a se desenvolver e esperar pelo dia em que eles voltariam.

-- Porque se mantiveram ocultos todo esse tempo? -- Eu estava realmente impressionado. Embora a estória parecesse fantástica demais para ser verdade, adquiria sentido quando se observava tudo que havia ao nosso redor. A convicção com que Bruno discorria pelo assunto mostrava que ele conhecia profundamente os fatos. Talvez como dissera, pudesse conhecê-los apenas olhando para dentro de si, por outro lado com certeza deveriam existir documentos registrando a história desta cidade.

Permaneceu calado durante algum tempo.

A porta às minhas costas se abriu e um homem entrou depositando numa pequena mesa ao lado dele uma bandeja com uma jarra e dois copos confeccionados de um cristal muito fino e transparente. Dentro deles colocou um líquido verde claro. Bruno pegou os dois copos e ofereceu um deles para mim enquanto o homem saia da sala. Tomei um gole, era um pouco doce mas refrescante, bebi um pouco mais e depositei o copo na bandeja que parecia feita do mesmo material das paredes e de tudo em volta. Bruno sorveu todo o conteúdo de seu copo, devia estar com a boca seca de tanto falar, e completou-o novamente bebendo mais um pouco devolvendo em seguida o copo à bandeja. Movimentou-se novamente na cadeira, eu permanecia imóvel tal o estarrecimento que experimentava, e ele continuou:

-- A humanidade sempre teve o hábito de destruir tudo aquilo que não era capaz de compreender. Mesmo hoje, se nos revelássemos, teríamos esta cidade invadida por curiosos e aventureiros em busca de riquezas. Claro que se isto acontecesse poderíamos nos defender de qualquer ataque que viéssemos a sofrer, mas isto significaria matar ou destruir, algo que não nos agradaria fazer. Claro que não nos mantivemos distantes da humanidade, em muitos momentos da história intervimos sem nos revelar, contribuindo para que a humanidade progredisse.

-- Então por que me chamou aqui. Mandou-me um bilhete dizendo que era hora de falar, e agora me diz que pretendem continuar ocultos do mundo lá fora. Não consigo compreender?

-- Há muitos anos atrás um homem chegou aqui vindo da Inglaterra. Como já lhe disse, pessoas de várias partes do mundo vem para cá, pessoas cujo dom se manifesta mesmo sem o treinamento apropriado. Ele, no entanto, era especial. Os antigos previram que um dia surgiria este homem, cujo poder seria tão elevado, que ele viria para, daqui, dar início à nova humanidade. Ele partiu ao encontro da civilização que construiu esta cidade a cinqüenta anos, para mostrar-lhes que é chegara a hora de nossos povos serem um só novamente.

-- Está me dizendo que o povo que construiu esta cidade está vindo para a Terra e podem chegar a qualquer momento?

-- Sim, foi por isso que o trouxemos até aqui.

-- Então vocês não vão ficar ocultos por muito tempo!

-- Certamente que não, por isso precisamos que você nos ajude a preparar todos para este grande dia.

-- Mas eu sou apenas um jornalista de um cidade do interior, como acha que o mundo inteiro vai dar atenção a mim?

-- Confie em você mesmo. Já lhe disse que apenas muito poucos não possuem o dom que nos faz especiais. Você também o tem. Ademais você é uma pessoa do mundo. Alguém que fala a língua dos homens. Quando começar a escrever, suas palavras serão ouvidas. Outros a repetirão e por fim a humanidade saberá. Fale apenas do que viu e ouviu e todos entenderão. Não se preocupe que Deus colocará as palavras certas em sua mente.

-- Deus? Vocês acreditam em Deus?

-- Sou um mestre, nada mais do que um governante, um líder para esta comunidade. O Messias, ou Átima como costuma ser lembrado, não é mais do que um homem superior por estar muito próximo da plenitude do conhecimento. Mas Deus está no cerne de todas as coisas. No inicio e no fim de todo o conhecimento. É por ele, para encontrá-lo, que faremos uma nova civilização. Quando formos todos um só, quando nos reunirmos em uma mente única aí então teremos encontrado o conhecimento pleno. Aí encontraremos Deus.

Eu me sentia ao mesmo tempo estarrecido e deslumbrado. Durante toda minha vida tinha buscado ser especial. Tinha tentado, em vão, alcançar o sucesso como forma de me tornar diferente das outras pessoas. Agora eu tinha algo que realmente me tornava diferente, mas ao mesmo tempo sentia-me como apenas uma gota num imenso oceano. E não havia nada que pudesse fazer para mudar isso. Assim era o mundo, e qualquer coisa que eu fizesse, por mais gloriosa que pudesse parecer aos olhos comuns, jamais seria tão gloriosa quanto a paz e a sabedoria que aqueles homens e mulheres poderiam proporcionar com seu conhecimento.

-- Vá. -- Bruno falou enquanto se levantava. Deu um passo à frente e colocou suas duas mãos sobre meus ombros. -- É chegada a hora de falar. Confie em você!

Tocou com a mão direita o lado esquerdo de meu peito, senti um pequeno formigamento como se alguma coisa me picasse naquele ponto. Afastou-se com um sorriso tranquilizador nos lábios, entendi que era chegada a hora de partir e resignei-me com o fato de que talvez jamais voltasse a vê-lo. Fiz um aceno com a cabeça e acho que cheguei a sorrir, ele acenou em resposta e saiu da sala. Fiquei ali de pé um instante e pela mesma porta Carlos entrou. Sorriu para mim e falou:

-- Tenho certeza de que não tem mais perguntas a fazer. Aqui está sua maleta, faremos uma refeição quando chegarmos à cidade.

-- Timóteo não virá conosco? -- Perguntei com certo desinteresse.

-- Chegou a hora dele abandonar o mundo. Já cumpriu sua missão e agora irá dedicar-se à comunidade. -- Fez um gesto para que eu o seguisse e caminhamos pelos corredores daquela magnífica cidade.

Observei uma vez mais aquela paisagem, ao mesmo tempo futurista e tão antiga quando o próprio homem. Suspirei, talvez pela apreensão quanto ao futuro que aguardava todos nós, e segui Carlos deixando a caverna e levando comigo um sentimento de despedida.

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