A Lenda de Átima - Parte I

I

Quando a tarde começava a se aproximar nestes longos dias de verão, o céu passava a apresentar uma mórbida coloração cinza que combinava com o desagradável cheiro de fumaça que se podia sentir em toda a cidade. Aos poucos, no entanto, o sol ia sumindo por trás das colinas que formavam o relevo ao redor da cidade e, com esta mesma fumaça, coloria o céu com tons de vermelho e laranja.

Olhando pela janela do prédio em que ficava o jornal, onde a vários anos eu trabalhava, aquele belo espetáculo, que sempre me comovia, parecia um pouco distante, quase fora da realidade.

Eu me sentia tenso. Um sentimento estranho de que estava sendo guiado por forças que desconhecia para algum destino obscuro.

Pelo menos era assim que me sentia desde hoje de manhã, quando cheguei à redação e fui surpreendido por uma carta endereçada a mim. Era um envelope simples, destes que se compra em qualquer livraria, mas não havia nome ou endereço do remetente. O carimbo indicava que havia sido postada em Chapada dos Guimarães, um município distante uns sessenta quilômetros de Cuiabá no estado do Mato Grosso, e que eu visitara algumas vezes.

O envelope continha apenas uma folha de papel rústico, muito diferente que qualquer outro que já vira. Era grosseiro, quase artesanal. Em uma letra desenhada, escrita em tinta de traços grossos, podia-se ler apenas: "É CHEGADA A HORA DE FALAR". O bilhete não estava assinado. Havia apenas um símbolo, que parecia ter sido impresso por um carimbo, no qual se podia ver um círculo com um triângulo dentro.

Fiquei intrigado com aquilo. As palavras me fizeram reavivar lembranças que julgara perdidas para sempre em minha memória e que haviam ocorrido durante um passeio que fizera à Chapada dos Guimarães.

Naquele tempo eu era apenas um jovem recém formado, que havia partido para o estado do Mato Grosso, mais precisamente Cuiabá, em busca de sucesso. Lá permaneci durante alguns anos, mas acabei por desistir diante dos inúmeros sacrifícios a que tinha de me submeter para viver ali.

Viajamos num sábado muito cedo para fugir do forte calor, muito freqüente naquela região, e assim desfrutarmos da refrescante mata recortada de riachos que fluem das terras mais altas em direção ao pantanal e outros rios da região. Éramos cinco ao todo, dos quais apenas Jonas, o mais velho, nascido e criado em Cuiabá conhecia bem os segredos da chapada. Bruno; um rapaz muito quieto de uns dezoito anos; que nos acompanhava, eu somente conhecera no início do passeio, nunca havia visitado aquela região. Não fossem os fatos que pude presenciar eu jamais teria dado maior atenção a ele.

Passamos direto pelo terminal turístico da "Salgadeira", que nos finais de semana era tomado pelos turistas que como nós fugiam da cidade. Queríamos um pouco mais de sossego, além do mais tínhamos nossa própria comida e cerveja o que nos tornava independentes dos bares e lanchonetes ali existentes. Seguimos pela estrada e fizemos uma breve parada no "portão do inferno", uma profunda garganta que segundo a lenda estimulada pelos habitantes da região não possui fundo e guarda os restos de inúmeras pessoas que ali caíram acidentalmente, pularam ou foram lançadas em direção a morte por jagunços que há muitos anos representavam a força da lei na região.

Entramos no carro novamente, e seguimos em frente. Nosso destino era um recanto distante uns vinte quilômetros de onde estávamos, conhecido como Cachoeirinha.

O recanto era formado por um pequeno riacho que descia da parte mais alta da chapada, passava sob a estrada e seguia por mais alguns metros até despencar por uma bela cascata de não mais que vinte metros formando um pequeno lago numa depressão de areia antes de continuar seu caminho pela mata. Como não estávamos em época de chuvas, o volume de água não era abundante e assim era possível ver a água escorrendo pelos furos que o tempo moldara na plataforma de pedra que formava o ponto extremo da cascata, de sorte que ela mais se parecia com três grandes chuveiros.

Era sem dúvida um belo espetáculo.

Havia, defronte ao lago formado pela cascata, uma cabana onde aos domingos funcionava uma lanchonete, e portanto ficaríamos sozinhos até lá, a exceção de raros visitantes que por ali pudessem passar enquanto o sol brilhasse naquele belo dia de sábado. E de fato não vimos ninguém.

Escondemos o carro entre algumas árvores para protegê-lo e descemos, com nossas coisas, por uma escadaria de concreto que levava até o pé da cascata. Depositamos tudo sob a varanda da lanchonete e por ali ficamos durante algum tempo apreciando a paisagem. Dei-me conta de que Jonas sumira, imaginei que ele tivesse voltado ao carro ou que tivesse se afastado para fazer suas necessidades, mas nem bem terminei de formular esses pensamentos e ele surgir por detrás da cabana falando-nos de uma outra cascata escondida pela mata, pouco conhecida, e que portanto seria um refúgio mais apropriado para nossa "aventura".

Começamos a discutir entre ficar ali mesmo ou seguir para ela, até que sugeri que fôssemos até lá dar uma olhada e então fazer uma votação. E tendo a maioria aceito, seguimos, deixando nossos pertences escondidos atrás da cabana.

Era uma trilha quase selvagem, cercada de mato e árvores, não era difícil atravessá-la mas percebia-se que era pouco usada. Tinha talvez uns duzentos metros e ao final dela uma pequena clareira se abria fornecendo uma bela paisagem.

Uma grande e única pedra no formato de um arco de ponta cabeça, com talvez uns trinta metros servia de base para uma cachoeira fina e cristalina de uns dois metros de altura que como uma lâmina fina depositava sua água num pequeno lago. Sob a pedra uma reentrância formava o que parecia ao longe uma gruta, mas que não passava de um buraco de um metro de profundidade que se estendia por todo o seu comprimento. Do lago nascia um pequeno córrego que serpenteava entre as pedras que cercavam sua proximidade e desaparecia na mata, para logo mais desaguar no riacho que deixáramos para trás. Pulamos o pequeno córrego e subimos em uma pequena elevação de onde pude confirmar que a clareira era toda cercada de árvores entre as quais apenas uma brecha, que neste ângulo, permitia-me ver o sol lançar seus raios sobre a cachoeira e o lago, dando-lhes uma coloração prateada.

Fiquei maravilhado pela beleza exótica do lugar e decidi que faria de tudo para passar a noite ali.

Bruno, que a princípio mostrara-se satisfeito com o local anterior, mostrou tal determinação em ficar ali, que além de me deixar impressionado, convenceu os demais. E assim trouxemos nossos pertences e nos estabelecemos.

Passamos o dia bebendo cerveja e nos refrescando na cachoeira com sua água, a principio fria, mas tornando-se mais morna e agradável à medida que o dia transcorria. O entardecer nos encontrou com duas barracas armadas onde passaríamos a noite. Jonas retornara, depois de verificar que o carro estava fechado e em segurança e que o recanto onde ele fora deixado apresentava sinais de ter recebido a visita de alguns turistas, pois haviam latas de cerveja, refrigerante e papéis espalhados por vários lugares.

Sem dar muita atenção ao fato, tratei de ligar o lampião, pois começava a escurecer, e instalei-o no galho de uma árvore que avançava sobre a frente das barracas. Passei um pouco de repelente nas partes expostas e entreguei-o aos demais. Bruno recusou e notei então que ele estivera quieto por todo o dia, parecendo um pouco desconfortável com toda aquela situação.

Quando nos encontrávamos perfeitamente instalados, ateei fogo no carvão de uma "panela de Gengis Khan" que comprara antes de mudar-me para o Mato Grosso e que se destinava a assar carnes. Nada mais que uma cuba de alumínio onde era depositado o carvão e sobre a qual era colocada uma tampa oval vazada, também em alumínio, na qual a carne, fatiada e temperada, era colocada.

Sentamo-nos ao redor da panela, improvisando tocos de madeira e pedras como bancos, e começamos a comer devagar, a medida que a carne ficava pronta. Enquanto todos consumiam carne e cerveja em abundância, Bruno, a essa altura motivo de chacota de todos, comia pouco e nada bebia. Aos poucos os ânimos foram se acalmando e as brincadeiras tolas foram substituídas pela conversa mansa.

A penumbra formada pelo lampião, e o brilho da panela, que tingia de vermelho o rosto de todos, foi aos poucos conduzindo o tema das conversas, e quando nos demos conta, falava-mos de estórias sinistras e misteriosas.

Jonas falou-nos dos mistérios que envolvem a chapada, desde sua possível transformação a milênios, de oceano em continente, o que segundo ele explicaria a existência de fósseis marinhos nas escavações arqueológicas, até o misterioso desaparecimento de pessoas que por ela se aventuraram. Falou, por exemplo, de um caso que beirava o ridículo sobre uma pessoa que tendo ficado até tarde na cidade de Chapada e precisando voltar a Cuiabá, não deu ouvidos aos insistentes pedidos de seus amigos para que pernoitasse na cidade e portanto não enfrentasse a estrada sozinho. Nela, ao passar pelo portão do inferno, começou a ouvir vozes e percebeu pelo retrovisor que seu carro estava sendo seguido por criaturas desfiguradas e semimortas, que a despeito da velocidade em que o carro avançava, conseguiam se aproximar o suficiente para que ele vislumbrasse seus rostos estampados de sofrimento e podridão.

Num certo momento, Bruno, que desde o final das brincadeiras havia permanecido passível, levantou abruptamente com uma expressão carregada no rosto e começou a falar. Sua voz parecia mais rouca, como se os sons de sua fala fossem produzidos no fundo de sua garganta. Embora tenha dito várias coisas, lembro-me apenas de tê-lo ouvido dizer: "É CHEGADA A HORA DE VER E OUVIR.", pois tão logo o fez, desabou ao chão como um saco de batatas, como se subitamente suas pernas não tivessem mais forças para sustentá-lo de pé.

Tudo aconteceu tão rapidamente que a princípio ficamos paralisados de susto, para só em seguido socorrê-lo. Ele parecia despertar de um sono confuso. Falava coisas desconexas como se estivesse bêbado, mas todos sabíamos que ele não havia bebido nada.

Fizemos com que fosse para a barraca e, tão logo se alojou, caiu em sono profundo.

Ficamos mais algum tempo falando sobre isto, como se todos tivessem uma versão clara e objetiva para definir o ocorrido. Os demais começaram a imaginar que Bruno sofria de algum tipo de epilepsia e foram, aos poucos, apresentado resistências em dormir com ele na mesma barraca. Como as duas eram apropriadas para três pessoas, aproveitei para garantir um espaço maior para dormir e sutilmente sugeri que eles me deixassem dividir com ele o espaço de uma delas, enquanto os demais dormiriam na outra barraca.

Quando o cansaço finalmente me alcançou dirigi-me para a barraca onde me deitei e fiquei a ouvir de longe os demais conversando, desta vez contavam suas aventuras em bordéis e boates com mulheres depravadas, até que por fim adormeci.

Acordei sobressaltado, como se um sonho ruim me acomete-se. Tudo estava silencioso e escuro demais, porém, a medida que meus olhos se acostumavam à escuridão, pude perceber que estava sozinho na barraca. Bruno saíra e nem se dera ao trabalho de fechar o zíper que nos isolava do exterior. Haviam muitos insetos e decidi sair e aplicar mais líquido repelente por todo o corpo.

Calcei o tênis que deixara do lado de fora, fechei o zíper para evitar a entrada de mais insetos, e comecei a procurar uma lanterna que estivera próximo ao lugar onde Jonas se sentara. Quando por fim a encontrei busquei o repelente próximo à barraca dos demais e comecei a aplicá-lo. Ouvia um zumbido agudo, que julgava ser do spray que estava acionando, mas quando parei de usá-lo percebi que o ruído continuava, e ainda crescia. Comecei, sem sair do lugar, a vasculhar as redondezas com o facho da lanterna, porém sua fraca luminosidade somado à densidade da mata não me permitia distinguir nada além das árvores que nos circundavam. Chamei por Bruno, uma, duas, três vezes talvez, até que o som de movimento na água me fez dirigir o facho de luz para o alto da cachoeira.

Estarreci-me ao vê-lo parado de pé sobre a plataforma, com os braços abertos, voltados para baixo, o rosto voltado para o alto como se estivesse olhando alguma coisa. O zunido continuava aumentando gradativamente, chamei por ele de novo e comecei a caminhar em sua direção, até o som se tornou tão intenso que ele não poderia me ouvir mesmo que eu gritasse.

Num movimento ele ergueu os braços, e instantaneamente a água que caia da cachoeira foi adquirindo um brilho intenso que foi tingindo a água do lago rapidamente e escorrendo pelo riacho que dele partia. Aquela luz prateada tomou conta de tudo e o som tornou-se tão intenso que cobri os ouvidos com a palma das mãos e cai no chão de joelhos tal a dor que senti. A última coisa de que me lembro foi de tê-lo visto alçar vôo como se de repente uma força qualquer o puxasse para cima.

Fui despertado logo de manhã por um de nossos companheiros, que assustou-se ao me ver ali, dormindo no chão à beira do lago, acordou-me com gozações de que eu não deveria beber tanto ou poderia um dia acordar com formigas na boca. Levei algum tempo para ordenar meus pensamentos, mas ao ver que Bruno estava de pé com uma expressão de que nada acontecera preferi não falar nada para evitar maiores brincadeiras. Eu estava de mau humor, e certamente não fui boa companhia para ninguém naquele dia.

No final da tarde, juntamos nossos pertences e voltamos ao recanto, onde algumas pessoas se divertiam brincando sob a ducha da cachoeira. Entramos no carro e partimos de volta a Cuiabá. Sentei-me no banco de trás do carro, Bruno ao meu lado, permanecia distante das conversas, observando a paisagem da chapada que percorríamos. Embora me esforçasse, não conseguia evitar de observá-lo atentamente.

A viagem transcorreu normalmente, apesar de um pneu destroçado por causa de um buraco na estrada.

Quando chegamos à cidade, levamos todos até suas casas, fiquei por último, e quando deixamos Bruno arrisquei a perguntar-lhe assim que ele saiu do carro se alguma coisa de anormal havia acontecido na noite anterior, ao que ele limitou-se a responder: -- Nada que você não venha a compreender no devido tempo.

Fiquei intrigado com aquilo tudo durante muito tempo. Nunca mais encontrei-me com Bruno, mudei-me de Cuiabá dois anos depois e, aos poucos, esta recordação foi sendo afastada pelo cotidiano de minha vida.

Pelo menos até hoje.

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