A dor

A dor pungente era o sinal mais evidente de que a doença se alastrara por todo o corpo.

Afora ocasionais crises de enjôo, febre e sudorese, era a dor a lembrança permanente de que seus dias se esgotavam cada vez mais rapidamente.

E naquele dia este pensamento atropelou-o na fila do supermercado com a fúria avassaladora de m caminhão em alta velocidade.

Ele contorceu-se, crispando as mãos com força sobre o abdômen. Seu rosto contraindo-se violentamente enquanto um ruído abafado escapava de sua boca.

As pessoas ao redor se afastaram. Assustadas pela cena barulhenta de potes de vidro estourando, espalhando pepinos e azeitonas pelo chão, onde latas rodopiavam em malabarismo orquestrado pela grotesca figura que regia aquela sinfonia degradante.

Aos poucos, puderam notar que era apenas um homem, agora suado e arfante, que sofria com algum mal estar momentâneo.

Saiu dali amparado por um desconhecido supervisor de seção de frios. Fustigado pelos olhares e comentários que o colocavam entre a doença e a dependência, mas certamente como “coitado”...

Não era assim que pensava sobre si mesmo. Na tentativa de preservar a auto-estima e a coragem nutria a quixotesca imagem de um cavaleiro lutando contra moinhos que insistiam em ser monstros vorazes.

Tudo em vão. Em momentos como este conseguia apenas se sentir um pobre e derrotado “coitado”.

Em casa, postou-se imóvel no confortável sofá da sala deixando que o pensamento vagasse errante por todos os recantos em que ele ainda se fazia uma presença ausente e refletiu sobre os assuntos que devia concluir antes de converter-se numa ausente presença.

No trabalho não faria muita falta. Um analista a menos para protocolar e julgar processos inúteis de volúveis proposições.

No lazer, um espectador a menos nas incontáveis filas de espetáculos e shows.

Um pedestre a menos nas pistas de caminhantes obesas e tagarelas.

Um solitário a menos a engrossar os acessos eletrônicos de encontros virtuais.

Não faria falta quando finalmente o último e lancinante gemido de dor rasgasse por inteiro o que ainda restava do homem que ele sonhara ser e nunca fora.

Quando a hora finalmente chegasse, não haveria ninguém a lamentar.

Só a dor a lhe acompanhar. Sempre ela, só ela, ninguém mais.

Seria um a menos.

Ninguém a menos. Ninguém a mais.

Um comentário:

sueli aduan disse...

...era a dor a lembrança,gostei muito do seu conto,poético.