A Lenda de Átima - Parte III

III

Descemos por uma escadaria esculpida na parede de pedras que cercava tudo o que se podia ver. Ao final dela o que parecia uma cabine, toda decorada por gravuras, nos esperava. Entramos e Timóteo pressionou com os dedos algumas gravuras que também decoravam o interior e ela começou a mover-se para o fundo como se fosse um elevador.

Meu deslumbramento aumentava cada vez mais. As edificações pareciam construídas com algum material muito diferente de qualquer coisa que eu já vira. Sua paredes densamente coloridas com ilustrações, lembravam as fotos dos livros de história das civilizações antigas.

Ocasionalmente, pude ver buracos, como se fossem janelas que me davam a sensação de que aquelas construções foram ou eram usadas como moradia.

Paramos e diante de nós uma passarela rígida, divisada por corrimãos, formava um caminho entre o elevador em que estávamos e uma destas edificações. Seguimos por ela. Num certo ponto parei e, olhando para baixo, pude ver que tudo aquilo se aprofundava numa visão infinita.

Passamos pela abertura onde terminava a passarela e entramos num corredor pelo qual seguimos até um grande salão onde quatro homens, trajando túnicas brancas confeccionadas em um tecido semelhante ao linho, nos esperavam. Entramos todos em um veículo, que se parecia com um bonde sem cobertura, e, tão logo o fizemos, começamos a nos mover como se deslizássemos pelo ar.

Atravessamos túneis fracamente iluminados e outras grandes salas como aquela em que embarcáramos. Em algumas delas era possível ver algumas pessoas, parecendo homens, mulheres e também crianças, trajando as mesmas túnicas de variadas cores. Em alguns momentos parecíamos nos movimentar no sentido descendente, em outros passávamos por túneis de cristal suspensos entre as edificações.

Finalmente paramos em um salão idêntico aos que já vira. Os homens de túnica desceram primeiro e caminharam, dois à frente e dois à retaguarda de nosso grupo, a passo constante. Tinha certa dificuldade de acompanhá-los tal o deslumbramento que experimentava. Passamos por alguns corredores e finalmente alcançamos uma ante-sala ricamente decorada e tendo como principal atrativo uma grande porta escura em contraste com o forte colorido das paredes.

Paramos e Timóteo aproximou-se de mim. O mesmo sorriso e postura humilde, acenou com um leve movimento de cabeça e afastou-se com uma leveza que lhe caia incomum. Carlos por sua vez, tinha agora o rosto aberto num expressão de contentamento, aproximou-se e colocando as mãos em meus ombros exclamou:

-- Ah! Agora você está realmente confuso. Mas o mestre já vai recebê-lo, e tudo ficará mais claro. Nós vamos deixá-lo agora. Voltaremos a nos ver, mas tudo depende do que nos espera. Até logo então.

No consegui dizer nada, e ele se afastou enquanto meus olhos o seguiam. Um dos homens ao meu lado; seu rosto não tinha nada de incomum, poderiam bem ser uma pessoa qualquer que eu encontrasse na rua, não fosse sua roupa é claro; fez menção para que nos dirigíssemos à grande porta negra.

Á medida que nos aproximava-mos ela começou a deslizar para os lados permitindo antever o grande salão que existia por detrás dela. Os homens que me acompanhavam pararam num certo ponto e numa profunda reverência afastaram-se sem voltar as costas ao salão. A porta deslizou deixando-me completamente só naquela imensidão vazia. Senti-me diminuído diante daquela sala. Ao contrário de todos os lugares por onde passara, as paredes eram completamente claras e livres de decorações. Num canto o que parecia um altar guardava um trono encimado por símbolos e inscrições delicadamente desenhadas na parede sobre as quais podia-se ver um círculo tendo ao centro um triângulo, o mesmo símbolo carimbado no bilhete que me trouxera até ali.

Caminhando na direção do altar era possível perceber que o teto sobre ele era mais baixo o que causava a desconfortável sensação de grandeza do trono e das gravuras sobre ele. A sala não era regular, na verdade era oval sendo mais larga do que comprida, e não havia cantos o que dava a sensação de infinito. O chão também parecia levemente inclinado em direção ao altar o que facilitaria, caso a sala fosse tomada por uma multidão, que as pessoas alojadas nos fundos pudessem também enxergar o que havia na frente.

Aproximei-me do altar e repentinamente uma figura surgiu por detrás do trono. Parou ao seu lado e ficou a me fitar. Era jovem e alto, os cabelos morenos e ondulados contrastavam com a tez branca indicando que a muito não tomava sol, mas não parecia pálido. Vestia uma túnica branca, como as demais que eu vira, e sobre ela um manto amarelo claro.

Aproximei-me ainda mais e pude perceber que o homem deveria ter uns trinta ou trinta e cinco anos e seu rosto tinha uma expressão pacífica e confortadora.

-- A quanto tempo não nos vemos? -- Sua voz era sonora e ressoava por todo o ambiente. Ao ouvi-la reconheci as feições do homem, Bruno.

Ele deveria parecer bem mais velho. Tinha, quando nos conhecemos, apenas três anos a menos do que eu e portanto deveria estar com quarenta e dois anos. Deu alguns passos para a frente, havia graça e beleza em seus movimentos. Envolveu o manto que esvoaçava quando caminhava com um dos braços e parou numa posição majestosa como se esperasse alguma referência de minha parte. Não me movi e num pequeno gesto, fez sinal para que me aproximasse.

O Altar não era muito alto, poderia subi-lo como a um degrau de escadas, depositei sobre ele minha maleta e indaguei curioso: -- Bruno?

-- Sim. Ele respondeu. -- Pareço diferente desde a última vez que nos vimos? Ou seria melhor dizer, da única?

-- Foi a única vez, mesmo. -- Respondi. -- Você deveria parecer mais velho!

-- Uma vida sadia, e uma alimentação bem balanceada ajudam muito. Mas você também não está tão velho assim, considerando seu estilo de vida.

-- O que sabe sobre meu estilo de vida? - - Perguntei defensivamente.

-- Jornalistas costumam ter uma vida muito agitada, muito café, cigarros, noites sem dormir, pressão dos editores. -- Falava enquanto caminhava lentamente de um lado para outro diante do trono. Eu o acompanhava com os olhos. -- Ademais as pressões que você tem sofrido, não ter conquistado o sucesso que esperava, seus ganhos que não podem lhe permitir realizar tudo quanto sonhou e..., há também a dor da perda de sua mulher.

-- Minha mulher? O que tem ela?

-- Você a perdeu por colocar seus interesses acima do amor que ela tinha para lhe oferecer. Você sabia disso, mas não deu atenção ao fato. Agora deixa que sua alma se corroa em arrependimento sem perceber que o melhor a fazer é retribuir, às pessoas que o cercam, ao amor que sempre recebeu.

Suas palavras eram duras, mas verdadeiras, mesmo assim reluto em aceitá-las. Sinto-me constrangido por toda a situação e disparo:

-- Quem você pensa que é para falar assim comigo? Não tem o direito de falar de minha mulher nem de mim. Meus sentimentos dizem respeito apenas a mim e a ninguém mais!

Me interrompeu, suas palavras estavam carregadas de irritação: -- Engana-se, o que sente e o que pensa influenciam todas as pessoas que o cercam. Você se sente só e abandonado, mas não é único neste mundo a sentir-se assim. Não tem o direito de desperdiçar sua vida com lamentações. -- Parou bem próximo de mim, e agachando-se fitou-me nos olhos e disse: -- Não meu amigo, não sinta pena de si mesmo! Você é especial. Estar aqui prova isto. Você tem a oportunidade de vislumbrar maravilhas que nunca olhos comuns puderam ver.

Parou por um instante e seu rosto emitiu uma expressão pensativa, como se escolhesse as palavras. Então continuou.

-- Não foi sua curiosidade que o trouxe aqui, mas sim, o desejo de fazer algo grandioso com sua vida. E você fará. Estará presente no momento em que todos os vícios e defeitos humanos forem confrontados com a verdadeira essência do homem. Quando uma nova era nascer, repleta de conhecimentos. Um tempo depois do qual todos os homens terão amor por si mesmos e pelos que os cercam, numa glória que nunca mais terá fim.

Senti-me confuso e transtornado, não compreendia totalmente o que ele me falava. Comecei a sentir uma forte dor de cabeça que não me deixava pensar direito, então recordei-me que não havia comido nada o dia todo. O pensamento fez-me sentir fome, quando pensei em falar-lhe ele disparou antes:

-- Você irá para seu alojamento agora, providenciarei que tenha comida para aplacar sua fome. Repouse então. Teremos muito tempo para conversar.

Percebi que dois daqueles homens vestindo túnicas brancas que antes me haviam acompanhado estavam posicionados ao meu lado. Quando Bruno levantou-se e dirigiu-se para trás do trono onde uma passagem deveria existir, um dos homens pegou minha maleta enquanto o outro me indicava a porta fechada por onde havíamos entrado.

Saímos do grande salão, passamos pela ante-sala e seguimos pelos corredores até uma outra sala onde, talvez o mesmo veículo de antes, nos esperava. Entramos nele e seguimos por caminhos semelhantes aos quais já havíamos passado, embora eu não pudesse distingui-los. Se fosse deixado em algum lugar daqueles, acho que ficaria perdido para sempre.

Passamos por alguns salões como aquele onde havíamos embarcado. Num deles paramos, haviam muitas pessoas e três delas, trajando as mesmas túnicas em cores claras, entraram em nosso veículo. Conversavam animadamente numa língua que eu não conseguia compreender. Cruzávamos esporadicamente com outros veículos, alguns vazios, mas a maioria ocupada por pessoas. Aquilo devia ser um sistema de metrô ou algo parecido, servindo de meio de transporte e locomoção entre aquelas grandes edificações que eu vira quando cheguei à caverna.

Logo depois paramos e descemos. Alguém veio correndo, passou por nós e entrou no veículo que saiu e desapareceu no túnel por onde estavam trafegando. Não havia ninguém mais ali, atravessamos o salão e caminhamos alguns minutos por um corredor. Tudo sempre densamente decorado por desenhos que pareciam muito antigos. Alguns realmente estranhos, outros representando paisagens naturais, havia no entanto uma marca cultural difícil de distinguir.

Paramos diante de uma porta marrom clara. Um dos homens pressionou um pequeno desenho retangular na parede e a porta deslizou para o lado com um leve chiado. Entramos e a sala encheu-se de luz como se um controle oculto tivesse sido acionado. A sala, com suas paredes bege clara, era pequena e estava vazia. Haviam pequenos retângulos como aquele do lado de fora da porta espalhados em vários pontos da parede. O homem que carregava minha maleta pressionou um deles e uma porta abriu-se revelando um compartimento que identifiquei como um armário. Depositou ali minha maleta e pressionando novamente o desenho a porta fechou-se. O outro começou a pressionar outros desenho, que eu passava a associar como interruptores, e das paredes começaram a surgir uma cama, uma mesa e cadeira, e finalmente uma janela ao fundo da sala, que descortinava uma paisagem para aquele mundo fantástico onde agora me encontrava.

Voltou-se para mim com um sorriso no rosto, era a primeira vez os via expressar algum sentimento, falou:

-- Se precisar de alguma coisa, pressione aquele sensor. -- E me indicou um desenho na parede. -- Alguém virá atendê-lo. Sua comida já foi providenciada e será servida logo. Tenha uma boa estada.

Dito isso saíram e a porta fechou-se atrás deixando-me inteiramente só. Aproximei-me da janela, que era fechada por um tipo de vidro muito transparente, e comecei a observar tudo que a vista podia alcançar. Era sem dúvida magnífico olhar para aquele lugar. Certamente não fora construído por mãos humanas. Talvez até fosse possível construir-se alguma coisa como aquela, mas as características, os desenhos, as formas de tudo o que se podia ver não eram comuns. Não se enquadravam nos padrões de edificações que a tecnologia moderna pudesse conceber. Havia alguma coisa muito misteriosa em tudo aquilo e eu estava determinado a descobrir o que era antes que pudesse enlouquecer. Talvez tudo não passasse de um sonho. Belisquei meu braço e a dor que senti fez-me crer que não era.

A porta emitiu um chiado atrás de mim. Por ela uma moça, trajando uma túnica laranja entrou. Trazia nas mãos uma bandeja com comida, que ela depositou sobre a mesa. Destampou dois recipientes e um delicioso aroma de comida espalhou-se pelo ambiente. Tinha os cabelos loiros e a pele muito branca. Depois de arranjar tudo sobre a pequena mesa voltou-se para mim. Possuía olhos azuis muito claros e mesmo sem nenhuma maquiagem tinha uma beleza singular. Numa postura respeitosa emitiu um sorriso naturalmente encantador e falou:

-- Voltarei em uma hora para buscar a bandeja. -- Sua fala tinha um sotaque que indicava que ela não era brasileira. Européia, talvez alemã. -- A comida está saborosa e tenho certeza de que gostará. Se precisar de mais é só...

-- Sei! Pressionar aquele botão ali. Já me disseram isso.

-- O senhor aprende rápido. Bom apetite então. -- E saiu.

Fiquei pensando que em outras circunstâncias eu bem poderia convidá-la para jantar comigo. Apesar de um pouco velho, ainda tinha algum charme que pudesse conquistar uma mulher. E sendo bela como ela, o medo de ouvir um não sempre era deixado em segundo plano.

A fome desviou-me destes pensamentos. Devorei toda a sopa, que parecia ter sido feita de legumes. Acompanhei-a com o pedaço de pão escuro que havia. No outro vasilhame o que me parecia um arroz com muitos ingredientes picados, de sabor marcante, quase acabou também. Tudo acompanhado de uma bebida de coloração igual ao vinho tinto, porém não consegui sentir a presença de álcool nela.

Tão logo terminei, senti a sonolência característica das refeições abusadas. Consultei o relógio que já marcava quase onze horas e decidi dormir. Levantei-me e espreguicei longamente. Tirei, com os pés, os sapatos que estavam sujos de barro e sentei-me na cama, era fina, mas bastante macia. Percebi que a iluminação foi diminuindo lentamente, não haviam lâmpadas no teto. A luz distribuía-se uniformemente como se emanasse de toda a sua superfície.

Tentei decidir de que lado me deitar e vi que numa das pontas da cama havia uma pequena elevação que bem poderia passar por um travesseiro. Deitei-me apoiando a cabeça neste ponto, e a luz começou a minguar até que finalmente sumiu de vez. Fiquei observando pela janela, que por sua vez foi se tornando opaca, as luzes das edificações que podia ver dali enquanto lembrava de tudo que me acontecera neste dia tão estranho e confuso. O sono aos poucos foi confundindo minhas idéias até que finalmente adormeci.

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